Minha empreitada dos vinte e três anos tem sido construir uma máquina do tempo. Sem a habilidade tecnológica ou a imaginação maquinista, eu traço os meus passos com hábitos e imersões. Volto alguns anos, colho o que me encanta os olhos, retorno à estradinha dos tijolos amarelos e ando um pouco mais para trás. Faço algumas pausas nas décadas que me interessam e no meio do caminho me apego à escritas e autores que chegaram no ápice antes mesmo de eu pensar em nascer. Revisito músicas antigas, vejo filmes mais antigos ainda. Mergulho em fantasias deliciosas e universos televisivos que capturam nos detalhes mais minuciosos as realidades que vieram antes de eu entender como eu faço parte delas. E, com um sorriso no rosto, ignoro minhas responsabilidades com dedicação inspiradora.
O acalento que as coisas que vieram antes do meu autoconhecimento me oferecem é incomparável. Percebo que, na verdade, esse meu costume de me retirar do que eu sei e mergulhar no já conhecido e confortável sempre andou de mãos dadas com meu estado de luta ou fuga – a fuga sempre foi familiar. E nos últimos meses, conforme as responsabilidades da vida adulta começaram a bater na minha porta com cada vez mais força e urgência, eu tomei grande apreço pelo ato de me esconder debaixo das cobertas nas tardes e noites de outono, mergulhar numa caldeirão místico e beber da poção mais deliciosa dentre as quais eu já provei. Eu não a intitularia de “nostalgia”, verdadeiramente, por ter provas concretas de que eu realmente consigo me teletransportar no tempo. Só isso explicaria a maneira como eu engoli uma série procedural de sete temporadas em dois meses, comecei a ver a beleza em partir o meu cabelo um pouquinho pro lado de novo, e comecei a me arrumar e a trabalhar com a playlist “a 2000s tv show” em um looping infinito no fundo.
Minhas evidências são variadas e me surpreendem na mesma medida que me entretém. Eu cheguei até a usar lápis preto de olho quando me arrumei para o Gagacabana – um produto que eu transformei em maldição por assumir caráter tão obrigatório nas fantasias das minhas apresentações de dança. Na minha jornada etnográfica1, eu flerto com cada elemento que caracteriza com excelência as mudanças socioculturais dos anos como se eles fossem a última gota d’água no deserto ou o último garoto de cabelos castanhos e gosto musical questionável em meio a um apocalipse. Busco encontrar os limites do que é aceitável e faço tudo para atravessá-los a 200 km/h, invalidando toda a minha pesquisa no momento em que eu interpreto o passado como a solução para todas as minhas angústias.
O que eu mais gosto nessas travessias para outras dimensões é que eu entendo que existe de fato um certo problema em querer fugir de tudo e voltar para trás, mas visto que eu me descobri muito talentosa em achar o lado positivo de hábitos um pouco problemáticos, é claro que escolho me vangloriar no meu novo dote. Se eu puder, eu invoco uma votação e convenço cada um de vocês a me nomear Presidente da Câmara Que Guarda Lembranças e Romantiza o Passado. E no caminho, empurro com a barriga o máximo que eu aguentar o meu presente que se estrutura no que é novo, incerto, e não descoberto. E pego emprestado as ferramentas dos que vieram antes de mim para aprender a lutar pela minha sanidade.
E para além de toda a minha revolta com o que eu não posso mudar na minha realidade contemporânea, meu apreço pelas primeiras décadas deste século, que coincidiram com os primeiros anos da minha vida, dialoga com o desejo de enxergar uma simplicidade na vida, agarrá-la com as duas mãos e prometer não me separar dela jamais. Existe uma beleza muito singular em misturar lembranças e histórias que me foram relatadas, em pensar em uma relação entre duas pessoas sem a interferência de tanta tecnologia, de ser um só com a natureza na maior parte do tempo, em ter tanto do que já se sabe hoje como um conhecimento a ser conquistado – como algo que é olhado com curiosidade e não horror.
Seria hipocrisia da minha parte não admitir que o meu argumento aqui é romantizado e muito parcial, afinal eu era apenas uma criança quando vivenciei os “tempos mais fáceis”. Minha vida foi sempre repleta de amor e segurança, e é fácil falar do que já passou com a certeza de que realmente o (meu) mundo era maravilhoso, uma vez que a realidade foi completamente a inversa para grande parte do mundo, e talvez para uma parcela dos que me leem. Talvez a minha busca deva ser pelos elementos compartilhados em escala universal de uma certa inocência que acompanha a ideia de nostalgia. Ou talvez crescer seja cruel e frustrante para todo mundo, e espernear não vai me adiantar em nada. Mas não custa tentar, né?
A etnografia é um método de pesquisa qualitativa, especialmente utilizado em antropologia, que busca a descrição e a compreensão de fenômenos socioculturais em grupos ou comunidades específicas. O principal objetivo é entender o modo de vida e a cultura de um povo, a partir da perspectiva dos próprios membros da comunidade.
Muito real isso de querer ser nesse antes, amei o texto.
Linda!!cada dia melhor!!!Arrasando como sempre!!